Um anjo chamado Maria Dulce

21/12/2018 19:48:34
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Em nossa cidade, num tempo um tanto distante, um anjo celestial se encarnou e veio à luz, no lar do distinto casal Olympia-Alberto Braune. Era o dia 26 de março de 1892, e a recém-nascida recebeu o nome da mãe de Deus, MARIA, acrescido de DULCE que, em latim, significa doce.

Recebeu de seus pais educação primorosa, alicerçada em sólidos princípios morais e religiosos. Estudou no “Colégio Braune”, conceituado educandário de suas tias paternas, dentre as quais se destacava a professora Sara Braune. Passava os momentos descuidados da infância, em companhia de seus inúmeros irmãos – Marília, Olympia, Sílvio Henrique, Carlos Alberto (Carlito), Ademário (Malote), Armando (Armandinho), Letícia, Josefina ( Finoca), Alberto (Betinho), Cristiano, Maria Olympia e Sara – entregue a inocentes folguedos e variadas brincadeiras próprios da sua idade.

As obrigações religiosas não ficavam esquecidas, iam sendo cumpridas, com seriedade: o estudo do catecismo, a assistência às missas dominicais na Matriz de São João Batista, a reza das ladainhas de Nossa Senhora, na capela das Irmãs Doroteias, a participação nas procissões do santo padroeiro e nas da Semana Santa.

A mocidade não tardou a chegar, trazendo muitos sonhos e planos para o futuro. Tudo era fascinante e radioso, sendo muitas as opções de lazer: piqueniques, em locais aprazíveis da cidade; espetáculos no Teatro Dona Eugênia; passeios de charrete pelas avenidas ao longo do Rio Bengalas; alegres tardes domingueiras, na bucólica Praça do Suspiro; exibições de patinadores no rinque da Praça XV de Novembro ( no local, a desativada Rodoviária Urbana); corridas de cavalo no Friburgo Jockey Club, situado no Prado; saraus, nas residências de famílias amigas.

O círculo de amigos da jovem Maria Dulce era composto de moças e rapazes das tradicionais famílias friburguenses que, juntamente com a sua, constituíam a elite de nossa sociedade. Eram as famílias: Salusse, Veiga, Valle, Zamith, Galeano das Neves, Marques Braga, Sertã, Elias de Moraes, Vicente de Moraes, Van-Erven, Martins (proprietário da Vila Amélia), Clemente Pinto (descendentes do Barão de Nova Friburgo) e outras mais.

Com o passar do tempo, caminhos vão sendo traçados, destinos definidos, profissões escolhidas, casamentos celebrados. Maria Dulce, que trabalhava no externato do Colégio Braune, situado na Av. Friburgo nº 60 (atual Comte Bittencourt), o internato havia funcionado nas Braunes, contraiu núpcias com o dentista Raguzzino Barcellos, nascendo desta união, um casal de filhos.

Poucos anos depois, a família perderia seu chefe, pois Dr. Raguzzino morreria vitimado pela tuberculose, no ano de 1931. Dona Dulce não esmoreceu, dedicando-se à educação e ao bem estar de seus filhos. Trabalhou no serviço municipal de aplicação da vacina BCG às crianças recém-nascidas e, no mesmo serviço, quando este passou a ser de responsabilidade da esfera estadual, coordenado pelo Centro de Saúde, inaugurado em 20 de novembro de 1938. O trabalho era domiciliar e Dona Dulce ia, abnegadamente, cumprindo a sua missão de imunizar as crianças contra a tuberculose. Eu, também, fui vacinada por ela.

À medida que seus filhos iam crescendo, tornando-se mais independentes, ela ia cuidando, com mais desvelo, de quantos necessitassem de seu auxílio. A qualquer hora do dia ou da noite, saia para aplicar injeções nos enfermos. Era só bater à sua porta, que a ajuda era obtida. Consolava os que haviam perdido seus entes queridos, visitava os doentes e encarcerados, amparava os órfãos, auxiliava as viúvas, dava pão aos famintos e água aos sedentos. Cumpria, com amor e desvelo, as determinações do Evangelho da prática das “obras de misericórdia”, pelas quais seremos julgados, no Juízo Final.

A fama de sua bondade ia, aos poucos, se espalhando, até tornar-se conhecida em toda a cidade. Eu, também, muitas vezes, ouvi meus pais falarem a seu respeito, e passei a ter por ela profunda admiração. Tínhamos o privilégio de receber a sua visita, porque ela trabalhava com meu pai, Dr. Salim Lopes, no Centro de Saúde, da Rua Dona Umbelina (Augusto Cardoso). 

Por ocasião da II Guerra Mundial, ao se aproximar o Natal de 1944, Dona Dulce foi às casas que tinham crianças, pedindo que na Noite Santa, cada uma rogasse por um “pracinha friburguense”, acendendo uma vela para o Menino Jesus, quando tive o privilégio de ser uma dessas crianças, escolhidas por ela.

A sua fisionomia acolhedora, caracterizada por um suave sorriso, transmitia muita paz e serenidade. Sempre vestidade preto- num eterno luto, desde que enviuvara- prendia os grisalhos cabelos num coque baixo, quase na nuca, tendo apenas por adereço, brincos pingentes, de discretos brilhantes. 
Sabia transformar o mais simples presente, em algo atraente e delicado, ornando o embrulho com florinhas do campo.

Na manhã do Natal de 1948 – portanto há setenta anos – mal as crianças desembrulhavam os presentes deixados por Papai Noel, uma notícia triste se espalhou pela cidade: Dona Dulce morreu. Aquele anjo celestial tivera saudades das coisas divinas e se apressara a regressar à sua pátria, ao céu.

Pesarosa, fiquei na esquina da Rua da Campesina (Fernando Bizzotto) com a Alberto Braune, para ver a passagem do cortejo fúnebre, com destino ao Cemitério do Santíssimo Sacramento que, naquele tempo, era a pé.

Naquele ano, os acordes dos cânticos natalinos desafinaram; os brinquedos deixados por Papai Noel perderam o seu encanto; as flores, luzes e fitas das guirlandas ornamentais perderam o seu viço, brilho e cores.

O Natal de 1948 não teve esplendor.

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